CORAÇÃO E CINZAS (2014)

Heart and Ashes (2014)
Centro Cultural Vila Flor, Guimarães




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151 páginas

Português/Inglês

Publicação: Centro Cultural Vila Flor, Guimarães
Textos: Miguel von Hafe Pérez / Ivo Martins 
Design: Pedro Nora
Impressão: Maiadouro
ISBN 978-989-8474-20-9
Tiragem: 500, Janeiro 2014 







































































































































Por Ivo Martins

Coração e cinzas — Arlindo Silva
Guimarães: Centro Cultural Vila Flor, 2014

O acto de pintar simboliza também um gesto de coragem e de humildade. Terminado um século marcado por duas guerras mundiais, do qual emergiram manifestações artísticas fulgurantes, avanços tecnológicos, revoluções, mudanças políticas, sociais e de costumes, uma lógica demolidora das ideias vanguardistas veio proclamar o culto da novidade a qualquer preço.
A pintura figurativa tem atravessado um período difícil de relativo apagamento e subvalorização, por vezes olhada como património quase arqueológico, proveniente de uma época remota e grandiosa que não voltará a repetir-se. Prevalece a obrigatoriedade de inovar e o impulso de conceptualizar e intelectualizar a novidade ao mesmo tempo que se reduz o espaço ao artista figurativo que não deseje comprometer-se com a tirania mediática da imagética contemporânea. As práticas artísticas mais antigas e com mais história são relativizadas em proveito de abordagens estéticas multidisciplinares e tecnológicas, onde o presente só parece poder afirmar-se em conflito com o passado.
Numa realidade artística exposta ao niilismo de uma sociedade mediatizada, sobrevém uma lógica de mercado concorrencial que diviniza o artista/estrela, deixando pouca margem de sobrevivência a práticas como a de pintar.
A pintura necessita de um tempo de produção mais lento, um intervalo adequado entre princípio e conclusão. Quem quiser aventurar-se neste terreno movediço e fugaz da mediocracia e da mercantilização dos espaços de actuação artística, procurando explorar momentos sublimes de celebração da vida, dificilmente conseguirá resistir à estranha sensação de dejà vu que uniformiza tudo aquilo que se produz.
Trabalhar a solidão ou a dor, a energia do pensamento ou a liberdade, a desilusão ou o desespero, o amor ou o desapontamento, a força cruel da natureza ou a sua exaltação, a contenção, o tédio, a revolta..., requer uma predisposição particular para aceitar as dificuldades de representar tais temáticas.
O presente de qualquer obra possui simultaneamente dois espaços temporais – o passado e o futuro – pelo que a sua superfície de identidade só é plenamente alcançada quando atravessa estes dois espaços, sendo capaz de se situar perante o primeiro, e de estabelecer um ponto de ligação com o segundo.
Para o pintor, as probabilidades de fracassar na “teimosia de reinventar um ofício dado como perdido”, como constata Lévi Strauss, são numerosas. É também por isso que as dificuldades inerentes ao exercício da pintura nos dias de hoje, tornam-na uma actividade meritória.
O trabalho do Arlindo Silva dá continuidade a uma prática artística intemporal. Sobre uma superfície plana – a tela – o pintor combina uma matéria concreta – as tintas, e assim regista factos de seu universo pessoal, reiniciando uma nova proposta de inteligibilidade no campo sensível da materialidade do quadro.
Porque a sua obra ainda não obteve a atenção pública que merece, esta exposição vem colmatar uma evidente lacuna no panorama das artes em Portugal, reunindo sem uma orientação retrospectiva um número expressivo de trabalhos.
As pinturas do Arlindo Silva: pessoas do seu círculo de relações captadas em instantâneos algo inesperados, anti-retratos que negam a tradicional pose das figuras retratadas, perpassam uma atitude desafectada e discreta, que é também transversal ao seu percurso artístico e humano.
A sua obra é honesta; nela ressalta a veracidade das disposições e movimentos dos corpos, que revelam timidamente estados de espírito - olhares, esgares, sorrisos, tensões; estados de êxtases ou de exaltação, sugerindo que chegamos ao interior do decorrer de uma história.
Pela ausência de formalismo, a força de cada trabalho assenta na quebra das rotinas, no plano inesperado de cada momento, na desconstrução de uma prática figurativa, que disseca o quotidiano e da qual sobressai uma plenitude quase cinética entre formas visíveis e palavras que imaginamos serem ditas.
A tensão ou distensão inscritas nos semblantes e na disposição dos corpos, em fundo geralmente neutro e de localização indefinida, fundem-se em referências de um real descrito por imagens, transmitindo contenção e despojamento, apesar da sua exposição quase sempre excessiva;  os momentos de sociabilidade sobreexpostos, acabam por nos revelar o seu reverso: uma inevitável sensação de abandono e solidão. 
O maior atributo a conceder à pintura do Arlindo Silva é afirmar que se trata de um trabalho que apela à pureza da representação pictórica, sem artifícios nem disfarces, alargando o campo de actuação artística significante, feito de sensações entre a beleza do que se vê, do que se faz e do que se diz. 

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Por Miguel von Hafe Pérez                           

Coração e cinzas — Arlindo Silva
Guimarães: Centro Cultural Vila Flor, 2014

Pois é, Arlindo. Começo contigo a olhar para mim. Nesse auto-retrato de 2000. Que te devolvo nesse olhar? Pouco, comparado com aquilo que define a solidez da certeza da amizade.
Palavras como mediação para terceiros: nada mais aborrecido e falacioso do que isso. Desenham-se filiações, criam-se contextos receptivos, uma autoridade discursiva sobrepor-se-ia à razão última da arte: a radical experiência estética individual. Desconvencionalizemos, então, tal como tu desconstróis a imagem na sua ubiquidade fotográfica e pictórica. Partindo da fotografia, as pinturas são momentos construídos em planos de montagem para-cinematográfica. Condensação de stills num único plano de imagem. O teu trabalho de atelier condensa a pluralidade unificada numa imagem única. O instante indecisivo que caracteriza tanta da fotografia contemporânea é aqui uma soma de decisões meticulosas, laboriosas, sofridas, rememoradas. Camada após camada, erro após erro, acerto esperado. Acerto realizado.
É a densidade dessa realidade subtraída na adição peculiar de sedimentos de tempo sobre o instante evocado que determina uma idiossincrasia criativa única.
Circa 2000. Espaços fechados, distâncias curtas. Sentes, por vezes, a respiração do retratado. Ouves o seu riso, espantas-te com as expressões faciais. A intimidade auto-revelada. A intimidade celebratória da sua essência: hora após hora, dia após dia, repetem-se gestos, palavras, expressões e olhares. Daí a possibilidade do silêncio. Daí a possibilidade da pintura.
Demarca-se um território que será recorrente. A tua proximidade é a nossa possibilidade de partilha.
A imagem como escárnio da racionalidade hermenêutica. Espaço de fuga compartida. Momentos de felicidade compartida (aqui talvez as palavras alegria ou gozo sejam mais precisas). Momentos não hierarquizáveis, mas que acabam por ser os mais recorrentes no teu trabalho. Decisão editorial. Todos somos editores. Editamos o modo como nos situamos. Ao centro, na margem. Editamos o modo como queremos que nos olhem. Editamos os sentimentos que reprimimos ou partilhamos. E, quando activos na esfera cultural, essa edição torna-se prementemente violenta. Todos nos perguntamos: porquê mais um objecto? Porquê mais uma imagem? Porquê mais um texto. Que máquina estamos a alimentar, que efectiva necessidade estamos a satisfizer? A nossa transitoriedade, claro. Aí voltaremos. Agora falo da transitoriedade de um posicionamento crítico perante um passado avassalador (vulgo história da arte), que se espera trabalhado de forma diferenciada e construtiva.
Este não é o retrato de uma geração. É o retrato cristalizado de um momento teu, dos teus, que se universalizam na particularidade das vivências individuais de terceiros. O olhar do espectador. Máscaras. A pintura como máscara que nos afasta da identificação individualizada para se aproximar da empatia abstracta, mas individualizável. Momentum cultural de uma cidade tua por adopção, o Porto, que se foi edificando a partir de histórias mais ou menos invisíveis e depois detonando com uma especificidade que se deverá contar (e já foi parcialmente contada) noutro contexto.
Sintomático, aquele Pedro. Fechado na opacidade inebriante da repetição do mesmo. Tal como Warhol nos explicava que assistir às novelas televisivas era basicamente o mesmo que o que aquele personagem que todos os dias se sentava no alpendre da sua casa fazia ao contemplar a mesmíssima paisagem, dada a previsibilidade da estrutura narrativa das emissões, assim exponenciando no seu cinema experimental o êxtase da imagem-mesma, aqui percebemos como nos nexos repetitivos apesar de tudo se vai compondo a complexa tessitura do nosso dia a dia, supostamente sem tempo para a hora a hora. Surpreendente oximoro esse, na tua pintura. O segundo, o micro-segundo, tratado com diligência medieva, como se olhasses pela janela e saltasses séculos naquela luz do norte.
Camas, camisas, fundos decorados, padrões de sofás, papéis de parede, colchas, lençóis. Algodão, lã ou licra. Flores, ramos, relva, árvores, folhas. Pele, cabelos, carne, pelos. Sentimos a sua volatilidade ou o seu peso. E a água…
Estado líquido. Claro que a metáfora da água aponta para a transitoriedade da vida. Outra vez. Na tua pintura condensa uma ambiguidade vital. Recreio, claro. Brincadeiras juvenis de adultos recuperando tempo perdido. Flutuar como resistência, momento de pausa, momento de introspecção possível. Água-movimento, enigma da pintura, água transparência, revelação da sua capacidade-artifício de construir o real.
No espaço aberto de noites vividas ao ar livre o teu flash intromete-se para criar cenários de intimidade. Uma só pessoa apanhada na tecnologia artificial da luz que a resgata de uma presença fantasmática. Duas pessoas que se acarinham numa dimensão pública do privado. Pressentimos um lado quase invasivo, não fora a proximidade esperada.
Não é aquele beijo que contemplamos. Não é aquele mergulho que nos arrepia. É a espessura conceptual de um entendimento da vida. A banalidade ficcionada como personagem maior daquela que é a narrativa intemporal das incertezas que nos conduzem por destinos que nunca se controlam na totalidade. Daí que transcendentes na sua imanência.
Dizia Luc Tuymans que não está numa de estética, está numa de significado e necessidade. A expressão de que o ofício poderia ser outro, mas traduz-se através da pintura. A estética é para outros. A necessidade e o significado são para o autor. Necessidade de responder às sucessivas mortes anunciadas. Necessidade de olhar o mundo através desse artifício. Significado procurado nas intermitências de uma realidade que se oferece cozinhada por departamentos de marketing, por obras de referência que não mais fazem do que reproduzir o previsível, por acontecimentos que nos anestesiam na sua crueldade distanciadora. Por isso prefiro classificar a tua pintura como necessária. E significante. Irritam-me as classificações facilmente aceites por um mercado ansioso por etiquetas, por uma horda de “agentes” com definições na ponta da língua. O que lhe falta, caro coleccionador? Abstracção geométrica pós-conceptual? Arranja-se. Pintura-pintura? Escultura-escultura? Pintura expandida? Escultura expandida? Enfim, um sem fim de nomenclaturas para disfarçar vazios facilmente desmontáveis. Cheira-me a feira de Vandoma, quando trocávamos vinis (actividade apesar de tudo mais virtuosa, diga-se). Necessidade. Sim. Creio que também pintas por necessidade. E não necessidade material. Honrada, seria justificação mais do que suficiente. Mas o posicionamento particular no contexto destas artes nacionais, a lentidão (auto-imposta?) com a qual vais aqui e ali aparecendo no mercado, vem confirmar isso mesmo. E, sobretudo, a maneira como te expões. Necessidade. Catarse. Significado. Comunhão. Factos e ficção. Factualidade ficcionada. O que importa?
(Pois, já reparaste que evito nomear: não me interessam os protagonistas, na sua maior parte conhecidos meus, também. Não interessará aos terceiros a quem nos dirigimos, creio).
Uma exepção impõe-se, no entanto. A intensidade emocional da perda. A intensidade emocional da vivência. Pai, mãe, mulher, filha. Mãe, talvez uma das mais pungentes homenagens à figura maternal da história da arte nacional, atrevo-me a dizer. Tal como O profeta o é no caso da paternidade.
No primeiro, a nudez presencial denuncia uma proximidade visceral. Aquelas costas são um território físico de um fluxo de sentimentos indizíveis. Estar aí. Quantos banhos terá dado aquela mãe? Num retorno cíclico devolvem-se afectos na simplicidade do quotidiano que por vezes parece ultrapassar-nos. Quando foi exposta esta pintura, e em contraponto, mostrava-se À espera de Verónica, onde a tua mulher, entubada, num estado líquido único, esperava o derradeiro momento que te traria uma pessoa mais às vossas vidas. Presença esperada, presença continuada. Até à ausência. Na imagem construída de O profeta mais uma vez a água. Limpar os pincéis. Imagem de abandono que rememora e corporaliza uma ausência. Lembro-me, aqui, de um outro auto-retrato teu: O homem invisível. Absorto numa tentativa de evasão, denuncias a gravidade de um presente que contém todos os possíveis. Morte é um desses possíveis. Recordemos as palavras de um grande, Steiner: Cada época histórica, cada sociedade e cada cultura tem a sua própria interpretação, a sua própria iconografia e seus próprios ritos de mortalidade. É bem possível que todas as mitologias e sistemas ou narrativas religiosas e metafísicas sejam uma morgue, um esforço, muitas vezes engenhoso e elaborado, de construção de uma casa para os mortos. Dela, supõe-se que os vivos possam sair com uma dor suportável, reconfortados, animados de esperanças que os compensem. A etiqueta a observar à cabeceira dos moribundos, as práticas de exposição, de internamento ou de incineração são tão várias como as comunidades humanas, as identidades étnicas e as condições de lugar. Segundo os cálculos da estatística, o número de mortos desde a última era glaciar ultrapassa o dos vivos. Somos ainda um planeta dos mortos. Mas devemos a esse facto as nossas preces, as nossas ontologias e grande parte da nossa arte, música e literatura.
Como reagimos perante a morte está culturalmente definido, diz-se. Mas se a vivência diária da dificuldade de convivência com a fragilidade física ainda é representável, a ausência só se suporta através da sugestão: Paraíso, onde as plantas deixaram de ter cuidador, e a água não corre. Ausência dolorosa em fundo esvaído. Olhos fechados. Olhos abertos a um fim sempre esperado. Por isso consegue-se sempre, e apesar de tudo, limpar os pincéis. Para um retorno.
Retorno à pintura, diz o cliché. Não. A vida na pintura, no teu caso. Tal como na queima do Ano Velho, cumprimos rituais de renovação que se repetem indelevelmente. Porque a suspensão da vida é demasiado custosa ou, simplesmente, um luxo que não nos podemos permitir.
Na perda encontramos a vida que desliza. Na alegria do novo, encontramos a vida que se antecipa, com todos os interrogantes que lhe são inerentes. Decides que o primeiro retrato da tua filha é um beijo escondido a três. Primeira demarcação de um território de afectividade que se sabe único. Magnífica decisão, pela sua inconvencionalidade, ancorada num território de contiguidade profunda, a que um fundo natural e primaveril aduz plenitude de felicidade expectante. Como afirma Jonathan Crary, a nossa era digital parece condenada a impor uma espécie de hipertrofia da eficiência de instantaneidade. Imagens que se sucedem sem lastro referencial para além do impacto momentâneo. Como não sentir na tua pintura a gravidade deambulante daquilo que nos define como seres sociais? Por isso referia que não fazes um retrato geracional quando retratas os que te estão próximos. Por isso esta não é a tua mulher, não é a tua filha. É a possibilidade do amor. Citemos Derrida: Não imagino um desejo que nasça ou arranque a não ser a partir da experiência da morte possível. É a mesma coisa. Para o dizer em termos desarmados e directos, nunca penso tanto na morte como nos momentos de alegria, de prazer ou de desejo intenso. Da transitoriedade. Creio que este desejo de produzir o que quer que seja, especialmente uma obra de arte, se define, então, a partir da morte possível. Daí a urgência do quotidiano. Permite-me, aqui outra citação, agora de Borges: Não é extraordinário pensar que dos três tempos em que dividimos o tempo – o passado, o presente e o futuro -, o mais difícil, o mais inapreensível, seja o presente? O presente é tão incompreensível como o ponto, pois, se o imaginarmos sem extensão, não existe; temos de imaginar que o presente aparente viria a ser um pouco o passado e um pouco o futuro. Ou seja, sentimos a passagem do tempo. Quando me refiro à passagem do tempo, falo de uma coisa que todos nós sentimos. Se falo do presente, pelo contrário, estarei falando de uma entidade abstracta. O presente não é um dado imediato da nossa consciência. O presente, tão indefinível, é aquilo que nos ofereces. A transitoriedade do presente, imaginado como eternidade possível.
Percurso inesperado este: as tuas pinturas seriam, assim, e ao contrário daquilo que a visão nos oferece, a mais pura abstracção. Porque são um ponto, não uma linha apreendida.
Esses pontos vão constituindo nódulos de significação assombrosos. É curioso como retornam temas, personagens, acções, e ficamos sempre estupefactos perante a sua presentificação. Nas últimas pinturas, recentemente apresentadas sob o título Sol e lua, cruzam-se cronologias, num passado revisitado e um presente omnívoro. Porque em ti a palavra passado não faz sentido. Sabes que o resgatamos continuamente, na construção de uma narrativa que queremos coerente, mas que acaba por ditar as suas próprias regras. Exactamente por isso entendes a necessidade da arte para construir uma narrativa que se torne mais real do que o real apreendido.
Deixemos o tempo deslizar. Nesse estado aquoso que tanto te atrai. Deixemos que a vida confirme a importância das tuas falsificações significantes. Deixemos que a aspereza da tua suposta brandura se sobreponha a primeiras impressões. Deixemos que alguns – porque no final, o que nos importa mais do que esses alguns? -, olhem para estes quadros e estes desenhos e sintam que algo lhes toca as entranhas. As entranhas de uma vida vivida. As entranhas de um olhar que nos fixa. As entranhas do mundo interior de um homem invisível, que fecha os olhos momentaneamente para melhor ver e dar a ver.

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Dos engados de Arlindo Silva.
Por Xosé M. Buxán Bran


Faro de Vigo, Quinta-feira 3 de Abril 2014.

Coração e cinzas
De Arlindo Silva
Guimarães, Centro Cultural Vila Flor
De 25 de Janeiro e 6 de Abril de 2014.



Fotografía ou pintura? As moitas conexións e imbricacións que foron sucedéndose ao longo do tempo entre ambas disciplinas fan que esa vella cuestión xa resulte agora bastante obsoleta. Tanto debatir sobre as bondades ou miserias dunha ou outra expresión artística non fan senón descubrirnos que, en realidade, e contra o que poidera parecer, ambas teñen demasiadas conexiones, que os supostos antagonismos non son tais e que, ao cabo, ambos medios artísticos veñen sendo en realidade caras da mesma moeda. Unha guerra dialéctica, de pensamento e de procedemento, e tambén de corazón, que vén durando moitos anos e que revélanos, a fin de contas, que non existe caso e que esas liortas son produto precisamente da súa enorme proximidade e de tanta mutua dependencia. Porque desde a aparición da fotografía pintores e fotógrafos van, quéiranno ou non, no mesmo barco e xustamente por mor desa conviviencia e vecindade vén tanta trifulca. Velaí, pois, as Fotografías procurando facerse pinturas aínda sen recoñecelo e as Pinturas ensoberbecidas que, ao seu pesar, e en cada paso que dan, imitan ou usan das fotografías.
Coido que Arlindo Silva (Figueira da Foz, 1974) que vive e traballa no Porto pertence a eses pintores desacomplexados que fan “pintura pintura” que é, á vez, “fotografía fotografía”. Cunha técnica extraordinaria no seu hiperrealismo impecábel e minucioso pinta cadros que son unha demorada recreación artesanal nas bondades do óleo en contacto cunha pincelada delicada e coidadosíma con moitas horas de taller. Pero o que o noso ollo e o noso cerebro de espectadores ve máis parece unha instantánea fotográfica que pintura. E ademais esas “fotografías”, que en realidade non o son, semellan “realmente” instantáneas inmediatas feitas de xeito amateur e rápido, sen requintamentos artísticos, sen “modelos” e pousados. “Pura fotografía” gratuíta, xurdida do pracer de fotografar a esgalla sen formalismos e composicións.
Resulta moi interesante ver como esas fotos loucas e anárquicas que, de certo non están, máis que imaxinamos como absolutamente existentes, mudan en pintura sobre lenzo da mellor Academia pictórica. Velaí os paradoxos e tamén, sen dúbida, a clave de bóveda do proxecto artístico de Arlindo Silva que converte dese xeito á súa obra, en algo moito máis que pintura hiperrealista ou figurativa, en algo moito máis que pura fotografía popular a representar o cotián. Nesa fusión de contrarios do académico e o banal, do óleo e a polaroid inexistente mais intuída radica a maxia e o engado deses cadros.
Logo está  o asunto temático desas pinturas todas que retratan seguramente a compañeiros de piso de alugueiro, quizais estudantes universitarios (acaso do Programa Erasmus?) e secadra amigos. Vémolos aí, emborcados nos sofás, debruzados nos leitos, mergullados nas bañeiras deses apartamentos vulgares e descoidados no transcurso de festas e troulas diarias, bebendo moito, fumando, rindo, ás veces durmindo, ou se cadra só peneques. Camaradería masculina de homes novos que linda case sempre no eros homosocial, porque están descamisados e abrazados, ou bañándose na piscina de noite, ou porque simplemente amosan a beleza descarada e desinhibida da xuventudes. No principio, seguramente tratouse só dun relato fotográfico feito de instantáneas disparadas por calquera dos presentes, axiña compartidas nas redes sociais, e sen outra pretensión que acreditar e lembrar na felicidade e no orgullo dese acto festivo, deses amigos, deses risos con flashes cegadores, con posturas e mocas imposíbeis, con rostros e corpos novos bañados de risa, alcohol e comida basura. Pero logo, cando o Arlindo Silva levou iso á tea e ao óleo, o acto intranscendete convértese de súpeto en homenaxe e memoria, e o efémero e temporal veu rozar o eterno. De aí que intitulase a este proxecto expositivo Coração e cinzas, porque o finísimo pincel, o óleo e o lenzo converteron esas imaxes que eran memoria e cinzas nun fondo latexar de corazón vivo que segue a bombear sangue e pintura, para reivindicar as cinzas e o pó mortal daquelas fotografías que xa non están.